O AVANÇO DIGITAL E A NATUREZA DO TRABALHO EM MUTAÇÃO
Por Francisco Gaetani e Virgilio Almeida
“Eu preciso contratar uma pessoa cem por cento digital, disse o executivo”. A frase ficou no ar. Não importava se a pessoa era um engenheiro, uma médica, um administrador, uma jornalista ou qualquer outra profissão. O requisito era claro: a candidata precisava vir equipada para o mundo digital. Essa é a mensagem chave associada ao avanço tecnológico, que permeia as economias desenvolvidas e algumas em desenvolvimento como China e Índia.
A aceleração da reestruturação produtiva em curso nas economias desenvolvidas está mudando a natureza das atividades econômicas, cada vez mais interconectadas e intensivas em tecnologias digitais. A inteligência artificial, por exemplo, tem sido comparada à eletricidade. É uma tecnologia de propósito geral que, ao longo do tempo, chegará a quase todos os aspectos da vida. Isso deverá trazer mudanças significativas no trabalho e na sociedade. A corrida na direção ao futuro encontrou o Brasil no contrapé – ocupado com suas crises e interminavelmente conflagrado por disputas sobre narrativas que traduzam um projeto nacional.
As gigantes tecnológicas – Google, Amazon, Microsoft, Facebook, Samsung, e Apple – criam raízes no país. O Brasil é um mercado imperdível e desafiador para qualquer multinacional. Já as sucessivas políticas industriais, científicas e tecnológicas das duas últimas décadas parecem não ter logrado consolidar uma estratégia digital consistente e aderente.
Os custos de oportunidade dos anos perdidos estão dados. O país ensimesmado negligencia a urgência dos desafios que lhe são colocados. O avanço digital vem tornando obsoleto um vasto conjunto de conhecimentos e habilidades da força de trabalho. Algumas profissões podem desaparecer num futuro próximo. A corrida para a massificação do processo de qualificação profissional em bases digitais está em curso no mundo inteiro, mas não no país, salvo por conta de iniciativas isoladas e dispersas.
O setor privado, nos países que lideram esta corrida, está tomando medidas ousadas destinadas a ampliar esta dianteira. A Amazon tem um projeto que destina US$ 12 mil a cada empregado que se dispõe a estudar temáticas como computação, transporte, comércio eletrônico e saúde. A AT&T anunciou ano passado um programa para requalificar sua mão de obra – 250 mil empregados – em capacidades digitais, através de uma rede de parceiros variados.
O Reino Unido acaba de anunciar sua decisão de treinar todas suas crianças em competências digitais, começando por formar 40 mil docentes para liderarem a iniciativa. O movimento sindical em países como a Suécia está na liderança das discussões relacionadas à requalificação de seus quadros que não pretendem esperar passivamente sua substituição por robôs. O argumento não é focado no temor das novas tecnologias, mas sim no medo de se tornarem prisioneiros de antigas tecnologias, sem a produtividade necessária para os negócios manterem competitividade.
O compromisso não é com a proteção dos velhos empregos, mas sim com o imperativo da qualificação para o desenvolvimento das novas ocupações. Os trabalhadores precisarão reinventar-se para permanecerem ativos no mercado – lembrando que viverão cada vez mais anos.
Esta postura contrasta com o silencio ensurdecedor no país sobre a dramaticidade e urgência do tema. No Brasil esta nova realidade, que se impõe de forma rápida, ainda não foi antecipada pela grande maioria das instituições. O Sistema S é uma exceção, embora a escala de suas iniciativas seja aquém do demandado até porque ele não tem como substituir o Estado brasileiro nesta tarefa, salvo de forma suplementar.
As pessoas, vistas individualmente, estão mudando de hábitos e migrando rapidamente para uma vida digital. Usuários brasileiros de Whatsapp, Facebook, Spotify, Uber, Waze, Twitter e Linkedin, dentre outros, são significativos em termos absolutos e indicam uma disposição da sociedade em se engajar na virada digital. Mas o mesmo não pode ser dito de empresas e governos, cuja compreensão e adequação à nova realidade caminha muito mais lentamente do que o necessário.
Há iniciativas que merecem destaque como os três estudos que o então Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, com a Escola Nacional de Administração Pública, produziram em parceria com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação produziu um documento de referência sobre a Estratégia Digital. O Portal de Serviços ao Cidadão e o conjunto de ações desenvolvidas no âmbito do Brasil Eficiente também convergem para os mesmos objetivos, assim como boas práticas que cidades, empresas e governos estaduais estão adotando no Brasil inteiro.
Mas estas ações não substituem a necessidade de um mutirão nacional focado na requalificação das capacidades digitais da juventude brasileira, da população economicamente ativa do país e da população idosa. Há vários pontos de entrada por onde se pode acelerar este processo de modo a ganhar escala e profundidade. Algumas empresas começam a seguir o exemplo do que Amazon, Microsoft, Google e Facebook estão fazendo, isto é, capacitando massivamente seus empregados e apoiando iniciativas com sinergias coletivas ligadas a esta cruzada.
Os desafios imediatos são dois: conscientizar o país de que estamos em uma corrida para um novo mundo digital com oportunidades que auxiliarão o país a modelar seu futuro e estruturar uma coalizão com a participação do governo, empresas, universidades, sindicatos e organizações do terceiro setor para coordenar um esforço massivo de digitalização do país. A alternativa é ficarmos para trás. Mais ainda.
Francisco Gaetani é professor da Ebape/FGV e ex-Secretário Executivo dos Ministérios do Meio Ambiente e Planejamento.
Virgilio Almeida é professor associado ao Berkman Klein Center da Universidade de Harvard e ex-secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação.